Bill Gates pediu à comunidade global que priorize o bem-estar humano, a saúde e a agricultura nos países em desenvolvimento, em vez de focar exclusivamente nas metas climáticas. Essa mudança de abordagem ocorre às vésperas da COP30, que começa nesta segunda-feira, dez de agosto.
- Gates afirma que o foco nas metas climáticas desvia recursos de problemas que matam milhões atualmente.
- Ele apresenta três “verdades incômodas”: a crise climática não acabará com a civilização, a temperatura global não deve ser a única métrica de sucesso e o desenvolvimento humano é a melhor defesa contra os impactos climáticos.
- O relatório de Gates causou polêmica ao comparar mortes relacionadas ao clima com outras causas evitáveis, destacando que desastres climáticos matam 50 mil pessoas anualmente, enquanto pobreza e doenças matam oito milhões.
- Especialistas criticam a nova posição de Gates, argumentando que pobreza e clima são interligados e que sua abordagem pode justificar a redução de metas de descarbonização.
- A COP30, sob liderança brasileira, pode ser um ponto de virada na narrativa climática global, mas a comunidade científica alerta que a aposta de Gates depende da eficácia das tecnologias para mitigar danos climáticos.
Nas últimas semanas antes da COP30, que começa nesta segunda-feira (10), Bill Gates pediu à comunidade global que concentrasse seus esforços principalmente em melhorar o bem-estar humano, a saúde e a agricultura nos países em desenvolvimento.
A mensagem representa uma mudança significativa em relação à sua visão anterior, que tratava as mudanças climáticas como uma ameaça existencial urgente e defendia grandes investimentos imediatos em tecnologias de redução de emissões. Agora, Gates afirma que o foco exclusivo nas metas climáticas está desviando recursos de problemas que matam milhões de pessoas atualmente.
A virada enviada em um relatório às delegações que chegam a Belém rapidamente se tornou um dos momentos mais tensos da COP30 e reacendeu discussões que muitos julgavam superadas.
Gates desafia o consenso climático global
No documento, Gates apresenta três “verdades incômodas” que confrontam a narrativa dominante:
• a crise climática não levará ao fim da civilização;
• o aumento da temperatura global não deve ser a métrica principal de sucesso;
• desenvolvimento humano imediato é a defesa mais eficaz contra impactos climáticos.
“Estamos perdendo de vista a métrica mais importante: o bem-estar humano”, escreve.
Para ele, a obsessão com o limite de 1,5°C transformou o debate climático em um ritual simbólico que pouco melhora a vida de quem já está em situação vulnerável. A crítica não é contra a ciência, mas contra a forma como ela vem sendo traduzida em políticas públicas.
O peso dos avanços tecnológicos
Gates sustenta que o discurso de colapso climático iminente não condiz com a realidade dos últimos dez anos. Ele afirma que projeções globais de emissões caíram 40% graças à expansão de tecnologias antes consideradas de longo prazo.
Entre as principais:
• produção de aço e cimento de baixo carbono;
• biocombustíveis mais eficientes;
• energia nuclear avançada;
• biotecnologia aplicada à pecuária para reduzir metano;
• eletrificação acelerada com energia limpa.
Para ele, essa revolução tecnológica já abre caminho para conciliar crescimento econômico, adaptação climática e redução de emissões, sem impor sacrifícios inviáveis aos países mais pobres que ainda lutam por saneamento, segurança alimentar e serviços básicos.
Clima x pobreza: a comparação que irritou cientistas
O relatório causou ainda mais polêmica ao comparar mortes relacionadas ao clima com outras causas evitáveis no mundo atual.
Segundo Gates:
• desastres intensificados pelo clima matam 50 mil pessoas por ano;
• pobreza, desnutrição e doenças como malária e tuberculose matam 8 milhões;
• o frio extremo mata dez vezes mais pessoas do que o calor.
Com esses dados, ele pergunta:
“Faz sentido investir bilhões para reduzir 0,1°C em 2050 enquanto milhões morrem agora?”
Para Gates, a agenda climática segue crucial, mas não pode se sobrepor a crises que matam hoje, como fome, doenças e pobreza extrema e que seguem representando riscos muito mais imediatos para grande parte da população mundial.
Especialistas rebatem: “um falso dilema perigoso”
A resposta de climatologistas e economistas foi imediata.
Michael Mann, um dos pesquisadores mais influentes do clima, acusa Gates de criar “um falso dilema”, argumentando que pobreza e clima são problemas interligados, causados pela mesma estrutura de desigualdade global.
Outros especialistas temem que a mudança de tom sirva como justificativa para relaxar metas de descarbonização, atrasar políticas de transição energética e favorecer setores que pressionam governos a postergar compromissos climáticos.
A reviravolta que revive um debate de 2007
Por trás da guinada de Gates há ecos de um debate histórico na economia do clima: Nordhaus x Stern, de 2007.
As duas visões representam caminhos diferentes:
• Nicholas Stern: defender ações agressivas e imediatas para reduzir emissões, evitando danos futuros irreversíveis.
• William Nordhaus: considerar que avanços tecnológicos ao longo do século compensariam boa parte dos danos climáticos, permitindo uma trajetória gradual.
A nova posição de Gates se aproxima da leitura de Nordhaus. Segundo esse modelo:
• mesmo com aquecimento próximo a 3°C, padrões de vida globais até o fim do século podem ser quase quatro vezes maiores que os atuais;
• tecnologia e produtividade futura superariam parte dos impactos climáticos.
Mas há um ponto sensível: esses modelos não contabilizam riscos catastróficos, como o colapso da Amazônia, o derretimento acelerado das calotas ou mudanças bruscas nos oceanos.
Riscos climáticos e a crítica dos cientistas
Martin Weitzman, um dos economistas ambientais mais respeitados, argumentou que reduzir emissões não é uma questão de custo-benefício, mas de gestão de risco existencial — evitar eventos extremos que podem alterar a estabilidade do planeta.
Tim Lenton, cientista climático da Universidade de Exeter, reforça que Nordhaus subestimou pontos de inflexão climáticos e que ignorá-los pode criar uma falsa sensação de segurança.
É nesse ponto que a visão revisada de Gates encontra mais resistência: ela assume que a tecnologia será capaz de compensar danos climáticos futuros, mas não apresenta respaldo científico robusto de que isso realmente ocorrerá.
Gates responde: “Não é hipocrisia”
Ciente das críticas, Gates antecipa a acusação de hipocrisia por sua pegada de carbono elevada. Ele afirma compensar integralmente suas emissões com créditos “legítimos” e defende que ataques pessoais desviam do debate real.
“A mudança climática é um problema seríssimo. Mas não é o único. E nem sempre é o maior para quem vive nas condições mais desfavoráveis”, diz.
Ele introduz o conceito de “Balanço Ético Global”, que propõe equilibrar:
• redução de emissões;
• adaptação climática;
• inovação tecnológica;
• desenvolvimento humano imediato.
Para ele, focar apenas na curva de temperatura é insuficiente e injusto.
COP30 vira palco da maior disputa narrativa desde Paris
Para Gates, a COP30, sob liderança brasileira, é a oportunidade ideal para redirecionar o debate climático global. Ele elogia a agenda de justiça climática defendida pelo Brasil e afirma que países vulneráveis “não podem esperar décadas por mudanças práticas”.
Se sua visão ganhar espaço, a COP30 pode marcar a maior virada de narrativa desde o Acordo de Paris.
Mas a comunidade científica alerta: a aposta de Gates só funciona se os avanços tecnológicos realmente superarem os danos climáticos e, até aqui, não há consenso de que isso ocorrerá.
O que está em jogo
A mudança de tom do bilionário reorganiza prioridades e pressiona a comunidade internacional a repensar sua estratégia. Ao mesmo tempo, reabre debates econômicos e científicos que pareciam encerrados.
A pergunta que acompanha delegações, ativistas e especialistas em Belém é direta:
Quanto risco estamos dispostos a aceitar e quem pagará o preço se a aposta falhar?